Kardec, Sua Casa e Seus Amigos
Autores: Reinaldo Di Lucia e Carolina Régis
Obs: texto longo. Quem não gostar de filosofia, após ler a parte sobre o século 19, vá para a parte que descreve "Kardec em sua intimidade".
APRESENTAÇÃO
O trabalho nasceu de discussões sobre a obra de alguns autores da época de Kardec e suas possíveis relações com a Doutrina Espírita.
A ideia é fazer com que o leitor se interesse em participar e entender o que se passava no mundo e na França do século 19, tanto no aspecto econômico e político quanto no aspecto filosófico, ou seja, quem eram os pensadores que "conviviam" com Kardec e em que contexto.
O trabalho se desenvolverá em seis partes. A primeira – Que mundo é esse? – será uma explanação geral do contexto histórico vivido no século 19, dando ênfase para a França, berço da Doutrina kardecista. O texto abordará as correntes filosóficas que vigoravam e que nasciam na época, as guerras, enfim, o que acontecia de importante. Isso, a fim de que o leitor se ambientalize e se acostume com a atmosfera predominante no período vivido por Kardec e demais pensadores abordados.
A segunda parte – Comte e o Positivismo – traz um dos maiores pensadores do século: Auguste Comte. A terceira parte – Durkheim e a Sociologia – trata da vida e obra do pai da Sociologia. A quarta parte – Darwin e a Evolução – estuda a trajetória de Charles Darwin, o criador da teoria evolucionista e, a quinta parte – Nietzsche e a Inovação – traz o modo diferenciado de pensar e duvidar, de um dos primeiros pensadores pós-modernos.
Por fim, a sexta e última parte – Kardec e a Reunião dos Amigos – trata da relação dos temas abordados e explorados pelos pensadores em estudo com a obra de Allan Kardec.
INTRODUÇÃO
É de vital importância, para o correto entendimento do âmbito do trabalho, esclarecer já de pronto sua proposta cultural.
Nossa intenção nesse projeto é realizar um curso, que traga ao público uma visão clara e diferenciada do século 19, seus pensadores e obras. O objetivo principal é a contribuição cultural. Este é, portanto, um texto de apoio ao curso, no qual os participantes possam manter as informações passadas, com maior grau de profundidade – impossível de alcançar durante as aulas. Ele não pretende seguir modelos acadêmicos ou tradicionais, segue apenas a experiência dos autores como público e a necessidade de trabalhos com linguagem amena.
O motivo de se aprofundar autores como Darwin, Comte e Durkheim é trazer a realidade desses pensadores, contextualizados no século em que viviam. Foram escolhidos porque são considerados de grande influência para a época e sociedade, influência esta que se mantém até hoje. Claro que há outros pensadores tão importantes quanto estes, que abrangem outras áreas de influência que poderão ser abordados em futuros trabalhos nesta mesma linha de projeto.
Darwin deu contribuições inegáveis à teoria evolucionista, ao desenvolver a tese da seleção natural pela sobrevivência do mais apto. Mas quem era Darwin? Como chegou a essas conclusões? Essas são perguntas a que o trabalho se propõe a responder. Assim como Comte e a teoria positivista, presente até hoje no método científico e Durkheim e a criação da Sociologia como cátedra, de importância extrema no estudo de nossas sociedades e no desenvolvimento das chamadas ciências humanas.
Nietzsche está presente para mostrar o lado questionador e desafiador do "ou não"... Um dos primeiros filósofos que podem ser considerados pós-modernos, rompeu com os métodos clássicos de pensar a religião, a política e muitos outros temas ao questionar tudo, através de seus aforismos, sem se intimidar ou censurar os próprios conceitos.
Allan Kardec e o Espiritismo entram no projeto justamente para contextualizarem-se com o período estudado e as possíveis influências recebidas de "seus amigos". É essencial para os estudiosos espíritas saberem a fundo quem foram esses "amigos" e o que fizeram em suas sociedades. A última parte se destina justamente a relacionar Kardec com essa época e esses pensadores, como concordância (por exemplo, Darwin) ou contestação (Nietzsche). Portanto, o fim doutrinário é apenas este: mostrar "a casa e os amigos" de Kardec e as possíveis relações para que a obra seja do jeito que é...
O SÉCULO 19
O século 19, de acordo com os historiadores, é o período compreendido entre o fim das guerras napoleônicas (1815) e o início do primeiro conflito mundial (1914), ou seja, uma centena de anos que se situam entre o Congresso de Viena e a crise do verão de 1914. Num dos séculos mais complexos e mais cheios que existem, o traço mais marcante é a frequência dos choques revolucionários, podendo ser chamado de "o século das revoluções", "porque nenhum em toda a história foi tão fértil em levantes, insurreições, guerras civis. Essas revoluções têm como pontos comuns o fato de quase todas serem dirigidas contra a ordem estabelecida (regime político, ordem social, às vezes domínio estrangeiro), quase todas feitas em favor da liberdade, da democracia política ou social, da independência ou unidade sociais." (1)
É essa profunda efervescência que se manifesta continuamente na superfície de toda a Europa. Essa agitação revolucionária, a princípio, apresenta-se como um contragolpe à Revolução de 1789 – a Revolução Francesa, que consistiu na derrubada de Luís XVI e da nobreza francesa pelo povo, culminando com a proclamação da República. Entretanto, com o desenvolver do século, características próprias vão tomando forma, caracterizando novos estilos e propostas revolucionárias. "Novos fenômenos, estranhos à história da França revolucionária, tomam um lugar crescente, colocam problemas novos, suscitam movimentos inéditos. É o caso da Revolução Industrial, geradora do movimento operário, do impulso sindical, das escolas socialistas." (2)
Podem-se dividir as revoluções do século 19 em quatro grandes grupos, a saber:
Movimentos Liberais – se produzem em nome da liberdade, contra as sobrevivências ou retornos ofensivos do Antigo Regime (monarquias absolutistas)
Revoluções propriamente democráticas – desejavam basicamente o sufrágio universal (direito de voto a todos) e o governo do povo. Diferencia-se do Liberalismo por este ser o governo de uma elite.
Movimentos sociais – que proporcionam às escolas socialistas seu programa e justificação.
Movimentos de nacionalidades – que se espalham por todo século 19, são consequências das ideias da Revolução sobre o nacionalismo.
Estima-se que a população mundial no século 19 cresceu mais que qualquer outro período até então: de 0,9 para 1,6 bilhão de habitantes. Vários fatores contribuíram para este aumento: métodos aperfeiçoados de produção industrial e agrícola, aliados a meios de comunicação eficientes, forneceram trabalho e alimento para as populações em crescimento. A extração mineral e a agricultura praticadas pelas potências coloniais em seus territórios ultramarinos, abasteceram de matéria-prima e alimento os países industrializados. O progresso da medicina e a adoção de melhores padrões de higiene pessoal, reduziram as taxas de mortalidade por cólera, tuberculose, varíola, febre tifoide e tifo.
AS GRANDES INVENÇÕES DO SÉCULO 19
Apesar de os êxitos econômicos não fossem de tal ordem que pudessem fazer esquecer a sucessão de crises (1900-01, 1907, 1912-13) e os problemas colocados pela concentração, registrava-se uma série de inovações tecnológicas que provocavam repercussões imediatas no campo econômico. É a era do aço e da eletricidade que se inaugura, junto com o início do aproveitamento do petróleo como fonte de energia ao lado da eletricidade que se notabiliza por ser uma energia "limpa", em contraste com a negritude do carvão, cuja era declinava e que, ao lado da telegrafia, marcam o início do que se convencionou chamar de "segunda revolução industrial", qual seja, a do motor de combustão interna e do dínamo.
Além dessas invenções, outras se sucediam. Embora menos importantes, eram sem dúvida mais espetaculares, como o avião, o submarino, o cinema, o automóvel, além das rotativas e do linotipo, que tornaram as indústrias do jornal e do livro capazes de produções baratas e de atingir um público cada vez maior. Tudo isso refletia um avanço da ciência, marcada pelo advento da teoria dos quanta, da relatividade, da radioatividade, da teoria atômica, além do progresso em outros setores mais diretamente voltados à aplicação, como a das ondas hertzianas, das vitaminas, do bacilo de Koch, das vacinas de Pasteur etc.
INSTITUIÇÕES E FILOSOFIAS
Quanto à Igreja, já havia perdido muito de seu poder e influência no século 19. Apesar de continuar sendo a maior e mais importante religião do Ocidente, os ecos da Renascença, o Iluminismo, o crescimento da ciência e o império da razão foram pouco a pouco minando-a.
Uma reação a esta situação ocorreu próximo à metade do século. Durante o reinado do papa Pio IX, um concílio do Vaticano (o concílio Vaticano I) reuniu-se para discutir o assunto da infalibilidade papal, que já estava sendo tramada há algum tempo. No entanto, a tese da infalibilidade foi aprovada e entrou em vigor em 1870. Segundo ela, tudo o que o papa disser ex-cathedra, isto é, falando oficialmente como papa, em matéria de fé e moral, é diretamente inspirado por Deus e, por isso, infalível.
No que diz respeito à história do pensamento, o século 19 foi praticamente um divisor de águas. Vejamos porquê:
Toda a filosofia imediatamente posterior a Kant (o que significa, na prática, toda a filosofia da primeira metade do século 19), girou em torno de suas especulações. "Depois de Kant, toda a Alemanha começou a falar sobre metafísica. Schiller e Goethe o estudaram (...) e Fichte, Schelling, Hegel (3) e Schopenhauer produziram, em rápida sucessão, grandes sistemas de pensamento erguidos sobre o idealismo do velho sábio de Königsberg." (4)
Mas, o início do século 19 acabou caracterizando-se, do ponto de vista do pensamento filosófico e literário, como um século pessimista. Seja na poesia, na música ou na filosofia, a imagem é a de uma Europa prostrada, derrotada e miserável.
Esse pessimismo ocorre principalmente devido ao fim da Revolução Francesa e o início da Restauração, o que significou, para uma grande parcela dos europeus, o fim do sonho de liberdade, igualdade e fraternidade, o fim da esperança. Essa é a tragédia deste início de século. Os três principais filósofos desta época encarnam perfeitamente esse estado de coisas. Schopenhauer é chamado o filósofo do pessimismo, enquanto Kierkegaard e Nietzsche são os pais da filosofia trágica. É neste sentido que dizemos que o século 19 foi um divisor de águas na filosofia. Ele marca o fim do período chamado "moderno" e o início da filosofia contemporânea, um modo de pensar até então inimaginável, em que o ateísmo, o nada, a relatividade da verdade e a crítica aos valores da sociedade seriam presença constante.
AUGUSTE COMTE E O POSITIVISMO
Comte em Sua Intimidade
Auguste Comte nasceu em Montpellier, França, a 19 de janeiro de 1798, filho de um fiscal de impostos. A mãe apega-se a ele de forma extremada. A irmã, de saúde muito frágil, vivia reclamando maior participação de Auguste em seus problemas. Tão complexos laços familiares foram afinal rompidos por Comte, mas deixaram-lhe marcas profundas.
Um ano depois de sair da Escola Politécnica, em 1817, Comte torna-se secretário do filósofo francês Saint-Simon (1760-1825), do qual receberia profunda influência. Essa íntima ligação intelectual foi extremamente proveitosa para Comte, pois acelera seu processo de desenvolvimento. A separação entre os dois ocorre em 1824.
Neste mesmo ano, sobrevivendo de dar aulas particulares de matemática, Comte casa-se com Caroline Massin (com quem permanece casado até 1842). Em 1826, inicia em sua casa um curso que resultou numa de suas principais obras, o "Curso de Filosofia Positiva". Em 1844, publica o "Discurso Sobre o Espírito Positivo", no qual critica os matemáticos (afirmando que chegara o tempo dos biólogos e sociólogos ocuparem o primeiro posto no mundo intelectual).
Entre 1851 e 1854 publica duas obras fundamentais: "Política Positiva ou "Tratado de Sociologia Instituindo a Religião da Humanidade" e "Catecismo Positivista" ou "Exposição Sumária da Religião Universal".
Os últimos anos da vida de Comte transcorrem em grande solidão e desencanto, sobretudo por ter sido abandonado por Littré, seu mais famoso discípulo, que não concordava com a ideia de uma nova religião. Auguste Comte faleceu no dia 5 de setembro de 1857.
Comte e Sua Produção
A grande diferença entre Comte e outros pensadores de sua época, que também se preocupavam com a reforma da sociedade (como Fourier e Saint-Simon), reside no fato que, para ele, a sociedade só pode ser convenientemente reorganizada através de uma completa reforma intelectual do homem. Sua filosofia estruturou-se em torno de três temas básicos:
Em primeiro lugar, uma filosofia da História com o objetivo de mostrar as razões pelas quais uma certa maneira de pensar (chamada por ele de filosofia positiva, ou pensamento positivo) deve imperar entre os homens. Esta filosofia da História, que na verdade é uma "filosofia da história do espírito através das ciências" (5), pode ser sintetizada pela célebre lei dos três estados.
Todas as ciências e o espírito humano como um todo se desenvolvem através de três fases distintas: a primeira é a teológica, na qual o homem só consegue explicar a natureza pela crença na intervenção de seres pessoais e sobrenaturais (deuses e espíritos). Esse estado teológico divide-se em fetichismo, politeísmo e monoteísmo.
A próxima fase é a metafísica, na qual o homem concebe "forças" (química, física, vital) para explicar a natureza e substituir as divindades. Este estado caracteriza-se pela dissolução do estado teológico e prepara o caminho para o estado superior, o positivo.
A última fase chama-se positiva e caracteriza-se pela subordinação da imaginação e da argumentação à observação. A visão positiva dos fatos abandona a consideração das causas dos fenômenos (procedimento teológico ou metafísico) e torna-se pesquisa de suas leis, entendidas como relações constantes entre fenômenos observáveis: na filosofia positiva, a redução dos fenômenos naturais a um só princípio (como Deus – no estado teológico – ou a Natureza – no estado metafísico) é impossível. O conhecimento positivo caracteriza-se pela previsibilidade, seguida de ações para o domínio da natureza: ciência, logo previsão, logo ação.
O segundo tema é uma fundamentação e classificação das ciências baseadas na filosofia positiva. Segundo Comte, as ciências classificam-se de acordo com a maior ou menor complexidade de seus objetos. A complexidade crescente permite estabelecer a sequência: matemáticas, astronomia, física, química, biologia e sociologia.
Finalmente, o terceiro tema é uma sociologia que, determinando a estrutura e os processos de modificação da sociedade, permitisse a reforma prática das instituições. Um aspecto fundamental dessa sociologia é a distinção entre estática e dinâmica sociais. A estática estuda as condições constantes da sociedade, e sua ideia fundamental é a ordem; a dinâmica investiga as leis do progressivo desenvolvimento dessa mesma sociedade, e sua ideia fundamental é o progresso. A esse sistema deve-se acrescentar a forma religiosa assumida pelo plano de renovação social. A sociologia conduziria à política, e esta a uma religião da humanidade, cujo catecismo prevê a substituição do Deus cristão pela Humanidade.
ÉMILE DURKHEIM E A SOCIOLOGIA
Durkheim em Sua Intimidade
David Émile Durkheim nasceu em Épinal, Departamento de Vosges, que fica exatamente entre a Alsácia e a Lorena, a 15 de abril de 1858. De família judia, seu pai era rabino e ele próprio teve seu período de misticismo, tornando-se, porém, agnóstico após a ida para Paris, onde estudou na École Normale Superieure.
Sai da instituição em 1882, portando o título de "Agrégé de Philosophie". Durante os anos em que ensinou filosofia em vários liceus da província (Sens, St. Quentin, Troyes), volta seu interesse para a sociologia. A França, apesar de ser, num certo sentido, a pátria da sociologia, não oferecia ainda um ensino regular dessa disciplina. Para compensar essa deficiência específica de formação, Durkheim tira um ano de licença e se dirige à Alemanha. Após amplo estudo, acha-se plenamente habilitado para iniciar sua carreira brilhante de professor universitário, ao ser indicado por Liard e Espinas para ministrar aulas de pedagogia e ciência social na Faculté de Lettres de Bordeaux, de 1887 a 1902. Foi este o primeiro curso de sociologia que se ofereceu numa universidade francesa, tendo sido, pelo prestígio que lhe emprestou Durkheim, transformado em "chaire magistrale", em 1896.
Aí o jovem mestre encontrou condições adequadas para produzir o grosso de sua obra. A tese principal foi "Da Divisão do Trabalho Social", que alcançou grande repercussão. Logo após, em 1895, publicou "As Regras do Método Sociológico" e, apenas dois anos depois, "O Suicídio". Assim, num período de somente seis anos, foram editados praticamente três quartos da obra sociológica de Durkheim.
Em Paris é nomeado assistente de Buisson na cadeira de ciência da educação na Sorbonne, em 1902. Quatro anos após, com a morte do titular, assume esse cargo. Mantém a orientação laica imprimida por seu antecessor, mas em 1910 consegue transformá-la em cátedra de sociologia que, pelas suas mãos, penetra assim no recinto tradicional da maior instituição universitária francesa, consolidando, pois, o status acadêmico dessa disciplina. Após ampla produção bibliográfica e enorme contribuição no campo da sociologia – que lhe rendeu o título de "Pai da Sociologia" – David Émile Durkheim morre, em 1917, em Paris, França.
Durkheim e Sua Produção
Conservadores ingleses e franceses, alarmados com as profundas mudanças iniciadas pela Revolução Francesa, preconizavam a volta de uma sociedade baseada na ordem, no consenso e governada pela autoridade fundada no domínio do chefe de família e na hierarquia da Igreja. Eles pretendiam mostrar que os valores "sociais" tinham precedência sobre os "individuais", e que a coletividade era uma realidade superior a seus membros. Foi esse o contexto no qual nasceu a ciência que se propunha como tarefa entender as causas e o sentido das transformações antes mencionadas: a sociologia.
Mas a sociologia somente começou a se consolidar enquanto disciplina acadêmica e a inspirar rigorosos procedimentos de pesquisa a partir das reflexões de Émile Durkheim. Ele acreditava ser necessário descobrir novas fontes de solidariedade e de consenso entre os membros da sociedade para fortalecer sua coesão.
Nesse sentido, deu continuidade à ideia comteana de instituir uma religião de cunho secular, fundada em princípios morais que poderiam revigorar a sociedade moderna. O positivismo foi a corrente de pensamento que teve maior influência sobre o método de investigação de Durkheim. Dizia que para obter êxito, o sociólogo deveria se manter distante e se despir de conceitos pré-concebidos sobre a sociedade e, para estudá-la, deveria vê-la como uma "coisa" a ser descoberta.
A sociologia pode ser definida, segundo Durkheim, como a ciência das instituições, de sua gênese e do seu funcionamento, ou seja, de toda a crença, todo o comportamento instituído pela coletividade. São os chamados fatos sociais que constituem o objeto próprio dessa esfera do conhecimento. Também podem ser definidos como maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhes impõe. Assim, os fatos sociais só poderiam ser explicados por meio de seus efeitos sociais. Dizemos que são externos porque são fatos coletivos, como a religião ou o sistema econômico, por exemplo. Ou seja, existem fora dos indivíduos e são internalizados através do processo de socialização.
Essas maneiras de agir e pensar são, além de externas, capazes, pelo seu poder coercitivo, de obrigar um indivíduo a adotar um comportamento qualquer. A coerção pode se manifestar de forma oculta, direta ou indiretamente, mas ela nunca deixa de existir.
Para Durkheim, a sociedade é a associação e combinação de consciências, ações e sentimentos que formam algo novo e externo àquelas consciências. Ainda que o todo só se forme pelo agrupamento das partes, a associação faz nascerem fenômenos que não provém diretamente da natureza dos elementos associados. A sociedade, portanto, é mais do que a soma dos indivíduos vivos que a compõe: é uma síntese que não se encontra em cada um desses elementos.
A consciência coletiva é representada pelo "conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade que forma um sistema determinado que tem vida própria". São as crenças, os costumes, as ideias que todos que vivem em um mesmo grupo compartilham uns com os outros. A consciência individual é aquilo que é próprio do indivíduo, que o faz diferente dos demais. São crenças, hábitos, pensamentos, vontades que não são compartilhados pela coletividade, mas que são especificamente individuais.
Certos fatos sociais estão menos consolidados são as chamadas maneiras de agir. É o caso das correntes sociais, dos movimentos coletivos, correntes de opinião, segundo as épocas e os países. Ou seja, são efêmeras no sentido de dependerem do contexto da sociedade. Já as maneiras de ser têm uma forma mais cristalizada, como as regras jurídicas, morais, dogmas religiosos e sistemas financeiros etc. Entretanto, ambos possuem influência sobre o individuo. Ele dizia que é através da educação que são passados tanto os costumes, dogmas e crenças, como as leis, as posições e a moral de determinada sociedade.
Para que Durkheim pudesse estudar uma sociedade, através da identificação de todos esses conceitos, era necessário um método. Ele precisava de um, que o permitisse conhecer a vida social de maneira científica, superando as deficiências do senso comum. Sua conclusão foi de que, em busca da objetividade, ele deveria assemelhar-se ao adotado pelas ciências naturais. Os cientistas sociais investigariam possíveis relações de causa e efeito, com vistas à descoberta de leis e mesmo de "regras de ação para o futuro", observando fenômenos rigorosamente definidos.
Durkheim tratava de saber por que os homens viviam e mantinham-se em sociedade e para isso, ele elaborou um outro conceito também importante: o de solidariedade social que, segundo ele, se tornava responsável pela coesão entre os homens e variava segundo o tipo de organização social, dada pela presença maior ou menor da divisão do trabalho e de uma consciência mais ou menos similar entre os membros de uma sociedade. Os laços que unem cada elemento ao grupo constituem essa solidariedade, que pode ser de dois tipos. Esses tipos têm relação com o "espaço" ocupado na mentalidade dos membros da sociedade pela consciência coletiva e pela consciência individual.
O próximo conceito de Durkheim a ser discutido gerou um livro inteiro a seu respeito. Falamos de "O Suicídio". O suicídio é um dos exemplos usados pelo pensador para exemplificar a sociedade agindo sobre os indivíduos, ou seja, fatores de origem social geram um novo fator nos indivíduos: as "correntes suicidogêneas". Sua definição de suicídio é: "todo caso de morte que resulte direta ou indiretamente de um ato positivo ou negativo praticado pela própria vítima, sabedora de que devia produzir esse resultado." (6)
Para Durkheim, moral é tudo o que é fonte de solidariedade, tudo o que força o indivíduo a contar com seu próximo, a regular seus movimentos com base em outra coisa que não os impulsos de seu egoísmo, e a moralidade é tanto mais sólida quanto mais numerosos e fortes são estes laços. Conflitos e desordens são sintomas de anomia jurídica e moral. Quando a sociedade é perturbada por uma crise, ela se torna momentaneamente incapacitada de exercer sobre seus membros o papel de freio moral, de uma consciência superior à dos indivíduos. Estes deixam, então, de ser solidários e a própria coesão se vê ameaçada porque as tréguas impostas pela violência são provisórias e não pacificam os espíritos. Para Durkheim a religião é um tipo particular de necessidade moral que é para a vida intelectual o que a obrigação moral é para a vontade. A ciência, a moral e a religião originam-se, portanto, de uma mesma fonte: a sociedade.
CHARLES DARWIN E A EVOLUÇÃO
Darwin em Sua Intimidade
Charles Robert Darwin nasceu em Shrewsbury a 12 de fevereiro de 1809. Tornou-se órfão de mãe aos 8 anos, sendo cuidado exclusivamente pelas tias e irmãs. Cercado de mulheres, foi mimado e induzido a uma vida de hipocondríaco, que o acompanhou até o fim da vida. Ao ingressar na escola pública vitoriana local, Darwin começou a demonstrar interesse pela natureza, colecionando espécimes e conduzindo seus próprios experimentos químicos. Aos 16 anos, foi enviado à Universidade de Edimburgo – uma das melhores faculdades de medicina da Europa – para seguir a carreira do pai. Lá filiou-se à Sociedade Pliniana de História Natural, fazendo amizade com o zoólogo Robert Grant, que também tinha obsessão pela coleta de espécimes.
Em 1827, por não se interessar o suficiente pela Medicina, Darwin foi retirado da universidade que frequentava e enviado a Cambridge, para estudar teologia e tornar-se padre. Lá conheceu o reverendo John Henslow, professor de botânica, interessando-se ainda mais pelo tema.
No ano de 1830, Henslow recebeu o convite para ocupar o cargo de naturalista não remunerado, a bordo do HMS Beagle, que partiria para a América do Sul, numa pesquisa para o Almirantado. Não aceitando a oferta, Henslow ofereceu a chance a Darwin que, prontamente, aceitou.
Esta viagem marcaria a vida de Charles Darwin. Passando pelos litorais leste e oeste da América do Sul, Austrália e diversas ilhas do Pacífico – incluindo as famosas llhas Galápagos – terminaria, cinco anos mais tarde, com uma circunavegação do Globo. Vale reforçar que as Ilhas Galápagos ficaram famosas porque foi lá que Darwin, ao observar as diferentes espécies e suas diferentes variações, optou pela Teoria da Evolução em detrimento da Teoria Criacionista. Pode-se dizer que este é o ponto culminante de seus pensamentos.
Darwin e Sua Produção
O tema evolução pode ser considerado como preponderante na discussão cientifica do século 19. Durante toda a primeira metade deste século, a tese predominante era a da poligenia. "Essa corrente do pensamento evolucionista do século 19 reunia os pensadores que, fiéis à versão bíblica, acreditavam que a humanidade tinha se originado de uma fonte comum. Porém, as diferenças físicas existentes entre as raças humanas, adaptadas a climas e meio ambientes diversos, eram tidas como indício de criação independente." (7)
O que Darwin "notara era que os pássaros das llhas Galápagos, e os da mesma espécie que viviam nas Ilhas de Cabo Verde, eram na verdade diferentes – apesar do fato de que ambos os grupos de ilhas eram virtualmente idênticas (remotas, vulcânicas, tropicais etc.). Na realidade, as espécies que viviam nas Ilhas de Cabo Verde eram muito mais próximas das encontradas no continente Africano, cujo meio ambiente era totalmente diferente. Seria possível que os pássaros da Ilha de Cabo Verde e os do continente Africano tivessem um ancestral comum?" (8)
Durante a viagem, Darwin escreveu notas que publicou em 1839 com o título de "Diário de Viagem". A leitura deste livro despertou a atenção de um ambicioso naturalista chamado Alfred Wallace que partira em uma viagem para a Malásia que duraria 12 anos. Tendo rascunhado um resumo da sua teoria (a ideias da sobrevivência do mais forte), Wallace a enviou a Darwin, que se espantou por haver coincidências de terminologias e ideias com uma antecedência de 12 anos, nos cadernos de anotações de Darwin.
Em 24 de Novembro de 1859, Darwin publicou "Sobre a Origem das Espécies por meio da Seleção Natural ou a Preservação das Raças Privilegiadas na Luta pela Sobrevivência". A teoria que Darwin formulou dizia que a evolução consistia em mudanças graduais, algumas das quais adaptavam-se melhor ao meio ambiente, sendo estes indivíduos aqueles que sobreviveriam. Darwin denominou este processo de "teoria da evolução por seleção natural."
Sobre a raça humana, as ideias de Darwin não deixavam espaço para intervenção divina e reduziam os seres humanos ao status de macacos avançados. Segundo o argumento de Darwin, os seres humanos não pertenciam a uma espécie permanente e divinamente ordenada, mas eram meramente parte de um processo em desenvolvimento contínuo.
"A Origem das Espécies" lançou a primeira grande ideia científica da história, ao alcançar fama popular. Darwin e a evolução tornaram-se o assunto do momento. Consolidou a tese da monogenia, que postula não apenas a unidade da espécie, mas também a origem comum de todas as raças humanas. Darwin morreu aos 73 anos, em 19 de abril de 1882. Embora não lhe tenham sido outorgadas honras de Estado durante a vida, recebeu a distinção máxima de ser sepultado na Abadia de Westminster.
FRIEDRICH NIETZSCHE E A INOVAÇÃO
Nietzsche em Sua Intimidade
Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844 na Saxônia, então província do poderoso império da Prússia. Aos 19 anos foi para a Universidade de Bonn para estudar teologia, filologia clássica e se tornar pastor. No ano seguinte, desistindo da carreira religiosa, decidiu transferir-se para a Universidade de Leipzig, concentrando-se em filologia clássica.
Nietzsche chega a Leipzig em outubro de 1865, com 21 anos. Nesse mesmo mês, toma contato com a obra que, de certo modo, influenciaria sua vida e pensamentos: "O Mundo Como Vontade e Representação", de Arthur Schopenhauer. Por essa época, dois fatos importantes ocorrem com o jovem: conhece Richard Wagner – famoso músico, compositor e admirador de Schopenhauer – e aceita a oferta da Universidade de Basiléia, na Suíça, para ser professor de filologia.
Em julho de 1870, com o início da guerra franco-prussiana, Nietzsche se apresenta como enfermeiro voluntário. Passando por Frankfurt, viu as tropas da cavalaria ressoando os cascos pelas ruas, em pleno esplendor. "Senti pela primeira vez que a mais forte e mais elaborada vontade de viver não se encontra na luta pela vida, mas numa vontade de potência, numa vontade de guerra e dominação." (9) Esse conceito de vontade de potência foi modificado para ser visto mais em termos psicológicos e sociais do que militares, mas jamais se livraria totalmente de sua inspiração militar. Trataremos sobrevontade de potência mais adiante.
O estilo de Nietzsche fora sempre claro e combativo, suas ideias condensadas, mas ainda assim imediatamente compreensíveis. Decidiu, no entanto, começar a escrever sob a forma de aforismos. Ao invés de usar argumentos longos e tortuosos, preferiu apresentar suas ideias numa série de intuições penetrantes, passando rapidamente de um tópico a outro.
Nietzsche e Sua Produção
O hábito aforismático de Nietzsche resultaria em estilo sem paralelo por toda a Europa durante o século 19. Na prosa de Nietzsche pode-se ouvir a voz próxima do século 20: ou seja, a língua do futuro.
Nietzsche enriqueceu a filosofia moderna com meios de expressão: o aforismo e o poema. Isso trouxe como consequência uma nova concepção da filosofia e do filósofo: não se trata mais de procurar o ideal de um conhecimento verdadeiro, mas sim de interpretar e avaliar. Ele combateu a metafísica, retirando do mundo suprassensível todo e qualquer valor eficiente e, entendendo as ideias não mais como "verdades" ou "falsidades", mas como "sinais". A única existência é a aparência e seu reverso não é mais o Ser; o homem está destinado à multiplicidade, e a única coisa permitida é a sua interpretação.
Nietzsche escreveu "O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música", "Humano, Demasiado Humano – Um Livro para Espíritos Livres", "Aurora – Pensamentos Sobre Preconceitos Morais", "A Gaia Ciência", "Assim Falou Zaratustra – Um Livro Para Todos e Para Ninguém", "Para Além do Bem e do Mal – Prelúdio de uma Filosofia do Porvir", "Crepúsculo dos Ídolos – Como Filosofar Com o Martelo", "O Anticristo, Ecce Homo – Ou Como Tornar-se o Que Se É", "Nietzsche contra Wagner", "As Intempestivas", "A Genealogia da Moral, "O Niilismo Europeu", "O Caso Wagner", "Ditirambos de Dionisio" e "Vontade de Potência", obra póstuma, polêmica, que será comentada posteriormente. Todas essa obras trazem conceitos da filosofia de Nietzsche, que veremos a seguir.
Vontade de Potência – Este é o principal conceito da filosofia de Nietzsche. Desenvolvido a partir de duas fontes principais: Schopenhauer e os gregos antigos. Nietzsche concluiu que a humanidade era impelida por uma vontade de potência, o impulso básico de todos os nossos atos. O cristianismo surgiu para pregar exatamente o oposto, com as ideias de humildade, amor fraterno e compaixão.
Super-Homem – ou além-do-homem. O protótipo do super-homem de Nietzsche era Zaratustra – cuja história fora construída em profundas parábolas de comportamentos. Esse super-homem do filósofo não é um ser, cuja vontade "deseje dominar". Se, segundo Nietzsche, vontade de potência significa "criar", "dar", "avaliar", nesse sentido, a vontade de potência do super-homem nietzschiano o situa muito além do bem e do mal e o faz desprender-se de todos os produtos de uma cultura decadente. A moral do além-do-homem, que vive esse constante perigo e fazendo de sua vida uma permanente luta, é a moral oposta à do escravo e à do rebanho. Oposta, portanto, à moral da compaixão, da piedade, da doçura feminina e cristã.
Assim, piedade, amor ao próximo, bondade, objetividade, humildade, constituem valores inferiores, impondo-se sua substituição pela virtú dos renascentistas italianos, pelo orgulho, pelo risco, pela personalidade criadora. O forte é aquele em que a transmutação dos valores faz triunfar o afirmativo na vontade de potência. O negativo subiste nela apenas como agressividade própria à afirmação. Assim, Zaratustra, o profeta do além-do-homem, é a pura afirmação.
Eterno-retorno – é essencialmente um tema ético. Mesmo que a repetição cíclica seja apenas uma possibilidade, seu único pensamento poderá nos transformar, como a crença medial no inferno pode transformar as almas. Mas, na moral de Nietzsche, trata-se apenas de ensinar-nos a realmente sermos nós mesmos. "Faze o que queres", a moral imanentista não possui outro mandamento, mas faze o que queres aceitando as consequências do teu ato e, sobretudo, não esqueças que este ato repeti-lo-ás nas existências sucessivas, milhões e milhões de vezes.
O eterno retorno, entretanto, não significa uma volta do mesmo, nem uma volta ao mesmo: ele é essencialmente seletivo, abrange o desigual e a seleção. Diz Nietzsche: "os homens não têm de fugir à vida como os pessimistas, mas como alegres convivas de um banquete que desejam suas taças novamente cheias, dirão à vida: uma vez mais".
E foi assim, acreditando no eterno retorno, que Nietzsche superou todas as terríveis crises de saúde que o acometeram. O ano de 1879 foi um dos piores para Nietzsche. Dores de cabeça e dores na vista impediam-no de ler ou escrever. A enfermidade de Nietzsche piora cada vez mais e suas causas não chegaram a ser esclarecidas de modo conclusivo. Alguns afirmavam que a paralisia cerebral se devia a disposições internas, outros diziam que foi o excesso de drogas ou a sífilis que a causaram. O que se sabe é que seus últimos dez anos de vida foram tutelados pela família. Ao meio-dia de 25 de agosto de 1900, morre Friedrich Nietzsche.
Nazismo? Após a morte de Friedrich, sua irmã Elizabeth Nietzsche formulou um Arquivo Nietzsche em Weimar, reunindo assim trechos de aforismos e ideias, elaborando "Vontade de Potência", encaminhando o livro para o lado nazista. Quando os nazistas tentaram cooptá-lo como seu filósofo oficial, e Hitler beijou a mão de Elizabeth Föster-Nietzsche na porta do Arquivo Nietzsche em Weimar, foram os nazistas que penetraram os domínios da loucura maior, não a filosofia de Nietzsche.
ALLAN KARDEC E A REUNIÃO
Kardec em Sua Intimidade
Hippolyte Léon Denizard Rivail nasceu em Lyon, França, em 3 de outubro de 1804. Era filho do magistrado Jean-Baptiste Antoine Rivail e de Jeanne Louise Duhamel. Em 1814, aos dez anos de idade, parte para o Instituto Yverdun, na cidade do mesmo nome, na Suíça. Lá, estudará com um dos mais célebres pedagogos dos tempos modernos, o professor Jean Henri Pestalozzi.
Já aos 14 anos, ensinava aos seus colegas menos adiantados, até mesmo substituindo o mestre Pestalozzi, sempre que este encontrava-se viajando. Aos 18, tornou-se bacharel, muito provavelmente em ciências e letras (o primeiro bacharelado reconhecido em França).
Rivail obteve uma forte base teórica e psíquica deste período passado em Yverdun. O método de ensino de Pestalozzi, que privilegiava o conhecimento obtido diretamente pelo aluno dos fenômenos da natureza, transformou Rivail num pesquisador sério e atento, além de um pensador profundo. Do contato com seus colegas de várias nacionalidades, aprendeu ele o respeito às diversas culturas do mundo, conferindo-lhes um caráter universalista que transparece na própria Doutrina Espírita. Finalmente, sua convivência de católico num país protestante deu-lhe a tolerância religiosa que faria com que, ao criar o espiritismo, guardasse distância segura das discussões dogmáticas.
Em 6 de fevereiro de 1832 casou-se com Amélie Gabrielle Boudet, nove anos mais velha, com quem viveu uma vida feliz. Não tiveram filhos. O que se sabe com certeza é que Rivail era profundo conhecedor e adepto do magnetismo, pertencendo até mesmo a umaSociedade dos Magnetistas de França.
A iniciação de Rivail nos fenômenos mediúnicos deu-se em 1854, quando um amigo, seu colega na Sociedade de magnetistas de França, de nome Fortier, contou-lhe de uma nova propriedade do magnetismo, a do movimento das mesas. Mas, quando este mesmo amigo o informou que tais mesas, além de mover-se, respondiam a perguntas que lhe eram feitas, Rivail duvidou: só acreditaria quando demonstrassem que as mesas tinham cérebro para pensar e nervos para sentir.
Em 1855, convidado pelo sr. Carlotti, outro amigo magnetizador, foi pela primeira vez a uma sessão de mesas girantes, à casa da sra. Plainemaison. Descortinava-se então para ele todo um mundo novo, que demonstrava a existência de seres incorpóreos. Em suas próprias palavras: "Compreendi, logo à primeira vista, a importância da pesquisa que iria fazer. Vislumbrei naqueles fenômenos a chave do problema do passado e do futuro da Humanidade, tão confuso e tão controvertido, a solução daquilo que eu havia buscado toda a minha vida. Era, em suma, uma revolução total nas ideias e nas crenças existentes." (10)
Rivail iniciou, então, seu trabalho junto aos espíritos. Por dois anos estudou ele profundamente. Assim, em 18 de abril de 1857 publicou, sob o pseudônimo de Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, obra básica do espiritismo, tendo uma segunda edição, atualizada em 1860. Em 1º de janeiro de 1858 lança o primeiro fascículo da Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos, publicação mensal que coordenou por 12 anos, até sua morte.
Em abril de 1858, fundou a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, o primeiro centro espírita conhecido. Seu objetivo era prover um lugar para que os interessados na nova Doutrina pudessem estudá-la. É interessante observar que, conforme seus estatutos, para ingressar nela dever-se-ia possuir alguma cultura geral que permitisse o estudo que nela seria feito.
Kardec publicou uma quantidade de obras espíritas, entre as quais destacam-se, além das já citadas: O Livro dos Médiuns; O Evangelho Segundo o Espiritismo; O Céu e o Inferno; A Gênese; Obras Póstumas; O Que é o Espiritismo; Viagem Espírita em 1862. Hippolyte Leon Denizard Rivail, já então Allan Kardec, faleceu em 31 de março de 1869, vítima da ruptura de um aneurisma da aorta.
A Reunião
Uma primeira ênfase que deve ser dada é a que Kardec não é um pensador atemporal. Ele é claramente fruto do século em que viveu. Profundo conhecedor das ideias e da cultura de sua época e ligado em todas as descobertas científicas e novidades filosóficas, ele pôde criar a filosofia espírita inteiramente em consonância com o pensamento modernista que permeava o século 19.
Isto fica claro já na base metodológica da Doutrina Espírita: o positivismo do amigo Comte. Kardec não se cansa de afirmar que o espiritismo é uma ciência positiva. Prova disso é a importância que é dada à razão como elemento de comprovação das ideias trazidas pelos espíritos, bem como a subordinação da imaginação à observação dos fatos.
Podemos até mesmo dizer que a ideia kardequiana de que o espiritismo poderia tornar-se uma religião, sem dogmas nem cultos, e que congregasse todas as demais, encontra respaldo na noção de religião da humanidade que Comte propôs em seus últimos escritos. Da mesma forma, a concepção de renovação das instituições sociais a partir do crescimento individual é claramente positivista.
Por outro lado, o positivismo previa que uma ciência de orientação positiva devia abandonar a procura de causas para focar-se nas relações entre os fenômenos, o que definiria suas leis. O espiritismo, apesar de preocupar-se em demonstrar as leis do universo (o que é claro na parte terceira de O Livro dos Espíritos, apropriadamente denominada de Leis Morais), não deixa de querer buscar as causas fundamentais dos fenômenos. Comte diria que esta é a fundamentação metafísica do espiritismo. Em suma, Comte é o amigo mais influente, o que forneceu a Kardec a base para que o desenvolvimento do espiritismo pudesse seguir o modelo mais aceito em sua época.
A principal contribuição do amigo Darwin ao espiritismo foi transformar o evolucionismo numa ideia praticamente unânime no meio científico do século 19. A teoria da evolução constante já era seriamente considerada, desde o começo do século, mas sofria forte oposição dos setores mais conservadores da época, principalmente pela instituição religiosa então dominante, a Igreja Católica.
A teoria vigente até então (a poligenia) não conflitava com o criacionismo, doutrina exigida pela Igreja e que colocava a criação dos seres por Deus como um dogma. Kardec aceitava tal versão, sendo fortemente a favor de que, apesar de a evolução dar-se intraespécies, as diferentes espécies originavam-se separadamente. Sua concepção começou a mudar depois da publicação de "A Origem das Espécies". Em "A Gênese", oito anos depois da segunda edição de "O Livro dos Espíritos" e nove anos depois do principal livro de Darwin, Kardec já começa a admitir a monogenia, ou seja, uma única origem gerando todas as espécies. Porém, ele o faz ressalvando que esta é apenas uma teoria, que ainda precisa ser confirmada pela ciência. De todos, Darwin era o amigo mais aventureiro, já que fez suas pesquisas viajando num barco ao redor do mundo.
Já Durkheim foi o amigo mais humanista, aquele que se preocupou com a sociedade e as pessoas diretamente. Criador da Sociologia, trouxe com seu livro "As Regras do Método Sociológico" – e as demais obras – debates, polêmicas e reflexões a respeito do modo como as pessoas agem e reagem perante o grupo social que vivem. Sem dúvida, a transformação da teoria sociológica de Comte, em matéria universitária fez com que todo o núcleo acadêmico e a elite pensante da Europa voltasse os olhos para o estudo metodológico da sociedade, para indivíduos como parte de um grupo, que influencia o modo de cada um agir.
O positivismo foi a base desta metodologia, que se baseava no observar a sociedade para analisá-la e descobrir seus pontos de anomia, ou seja, crise. Para um tempo em que família, religião, política e a própria sociedade estava ruindo – nos moldes antigos – um estudo deste porte era visto como uma salvação. Kardec também falou sobre o assunto em sua obra.
Referência clara é a Lei de Sociedade, n'O Livro dos Espíritos, que diz que é da Natureza do homem viver em sociedade; já que este não possui todas as faculdades possíveis para o insulamento; foi criado para isto. A importância dada por Kardec para o assunto é tamanha a ponto de dizer que o indivíduo que tenta viver fora da sociedade é egoísta, pois priva seus companheiros de compartilhar experiências com ele. Também é citada a importância da família na vida social, assim como o trabalho – Lei do Trabalho – e da Conservação.
Portanto, o conceito de solidariedade social, que Durkheim afirma ser o motivo do homem viver socialmente, é tratado por Kardec como algo maior, vindo diretamente de Deus, inata para que os homens possam evoluir. Ambos concordam no sentido de que o homem é um ser social, e viver fora dela é deixar de sê-lo.
Nietzsche é o amigo "ovelha negra". Radical, direto, sem censuras, fala o que pensa e pensa o que fala. Combate todo o tipo de coerção social, seja a religião, a política ou a moral. Tudo o que leva um indivíduo a fazer algo condicionado por outro, é condenável. Nietzsche falou sobre tudo, filosofou sobretudo. Em Anticristo disse que Deus estava morto, que morreu na Cruz. Kardec certamente pularia da cama, se não conhecesse o amigo. O que ele dizia era que o Cristianismo havia sido escrito por Paulo, alvo constante de suas críticas, que o fez de forma de incutir nas pessoas a fraqueza, a submissão. E isso tirava Nietzsche do sério.
Sua vontade de potência e seu super-homem trazem a instância máxima de poder, de progredir, de libertar-se das amarras das antigas crenças declaradas falidas para encontrar algo melhor. Semelhante ao ideal espírita de progredir sempre, evoluir sempre, seja por meios que a sociedade dispõe, seja pelo estudo constante. Claro que Nietzsche vai mais além quando diz que a moral do além do homem combate a do rebanho, da compaixão, da piedade, da cristã. Condenando o amor ao próximo e a humildade, constituídos como valores inferiores, bate de frente com o espiritismo de Kardec, que exalta o amor cristão. Embora Nietzsche condene muito mais a submissão e o medo de "Deus castiga" esse é um ponto divergente, dentre muitos, dos dois pensadores.
Não se deve confundir o conceito de eterno-retorno de Nietzsche com a reencarnação de Kardec. O conceito nietzschiano de eterno retorno é essencialmente ético, consistindo em se fazer o que quiser e arcar com as consequências. Para Kardec, a reencarnação é um meio de aprendizado e evolução do espírito. Kardec diz que devemos agir somente de acordo com o que aceitaríamos que fizessem conosco, o que é um princípio cristão. A consequência de "andar errado" ou transgredir a lei, é a não-evolução. Nietzsche não afirma que seja "errado" fazer o que quiser, sem medir consequências, apenas diz que deve-se esperar pelo possível retorno, e que a existência é algo que sempre retornará.
Apesar dos pontos conflitantes, o que faz de Nietzsche um grande amigo é o fato de estar sempre questionando, pensando e repensando os conceitos dados como certos. Ele critica a modernidade porque seus falsos conceitos estão em decadência e a submissão dos cristãos, em especial os pobres, alimenta um ódio à outra classe, que aumenta a crise. A frase de Kardec: "O Espiritismo, marchando com o progresso, jamais será ultrapassado porque, se novas descobertas demonstrassem estar em erro sobre um certo ponto, ele se modificaria sobre esse ponto; se uma nova verdade se revelar, ele a aceitará" (11) agradaria o espírito contestador de seu amigo Nietzsche. Claro, não sem antes contestar o progresso, a verdade e o próprio Espiritismo...
A reunião está, portanto, encerrando-se. A "casa" de Kardec foi exposta. O século 19 foi explorado de modo a demonstrar o caldo cultural em que estava imerso. As culturas, filosofias e teorias que emergiam, tiveram participação, ainda que indireta, na construção do Espiritismo.
Nenhuma das personalidades aqui descritas entrou em convívio direto, pelo que consta. Esse foi um subterfúgio dos autores para aproximar o leitor das ideias e das personagens, chamando-as de amigos, sua relação com a obra Kardequiana e com sua época; sua "casa".
As teorias de Darwin, Comte e Durkheim poderiam ser debatidas, no sofá da casa de Kardec, em um clima amistoso, para ajudar o anfitrião a formar sua doutrina. Obviamente, com a influência de "outros amigos" que eles, até então, não estariam percebendo. Nietzsche, a ovelha negra, estaria lá para a simples, mas difícil tarefa de lembrá-los que tudo deve sempre ser questionado (o famoso "ou não"); papel de um bom amigo.
NOTAS
(1) RÉMOND, R. O Século XIX. 7ª. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.
(2) Idem.
(3) Idem à nota 3.
(4) DURANT, W. História da Filosofia. Col. Os Pensadores. Rio de Janeiro: Ed. Nova Cultural, 1996, p. 276.
(5) VERGEZ, A. e HUISMAN, D. História dos Filósofos Ilustrada Pelos Textos. 4ª. Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980. p.287.
(6) DURKHEIM, É. O Suicídio.
(7) STOLL, S.J. Entre Dois Mundos: o Espiritismo da França e no Brasil. Tese de doutorado, Depto. de Antropologia da USP, 1999.
(8) STRATHERN, P. Opus citatus, p.47.
(9) Idem, Ibidem p.23.
(10) KARDEC, A. Obras Póstumas. 1ª. ed. São Paulo: LAKE, 1975.
(11) KARDEC, A. A Gênese. 17ª. ed. São Paulo: LAKE, 1994, p. 37.
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Fonte: Anais do VIII Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita - Edição Digital. O evento foi realizado em Santos-SP, de 17 a 19 de outubro de 2003.
Reinaldo Di Lucia, engenheiro químico, pós-graduado em Qualidade, professor universitário, foi presidente do Centro Espírita Allan Kardec, de Santos-SP, cidade onde reside. Expositor e articulista, é membro do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita - CPDoc.
Carolina Regis, jornalista, é integrante do Centro Espírita Allan Kardec, de Santos-SP e membro do CPDoc - Centro de Pesquisa e Documentação Espírita.
Fonte: Pensamento Social Espírita - http://www.viasantos.com/pense/arquivo/1399.html
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